domingo, 8 de setembro de 2013

Crítica: Gueto Bufo

Fotos: SECOM/Itajai - Victor Schneider
O grotesco nobre
Por Mariana Barcelos
Crítica do espetáculo Gueto Bufo, da Companhia do Giro.

Com direção artística, concepção e roteiro de Daniela Carmona e encenação de Élcio Rossini, Gueto Bufo, chegou a Itajaí depois de 15 anos de estrada. O espetáculo põe em cena duas bufonas, Vênus e Filó, duas mendigas, que tal como dupla de palhaços, se complementam em suas oposições.

Expulsas de lugares públicos por apresentarem comportamento inadequado, as duas encontram num gueto próximo a uma igreja o refúgio ideal para fazer pequenas encenações do cotidiano irônico das pessoas que as rejeitam. O cristianismo, a moral burguesa e a hipocrisia social são os temas das suas brincadeiras de cena. A dramaturgia, entretanto, não é criada em torno de uma linearidade narrativa, e sim do recorte de uma condição de vida, não se conta uma história, se exibe uma situação social. As peças ligadas à comicidade, que se fixam nos recursos do humor, da ironia e do grotesco têm sua forma distanciada da dramaturgia fundamentada nesta progressão linear. Esta sensação de truncado e inacabado faz parte da criação de estranhamento que o grotesco imprime e propositalmente provoca, como se tudo estivesse fora do lugar.

E está. A vida das bufonas está fora do lugar, está à margem do aceitável, do desejado. Por isso não importa se serão espancadas ou queimadas no final. Os mendigos não interessam, são alvos de projetos de “limpeza” institucionalizados, ou de diversão de jovens inconsequentes. O humor nasce então desse sorriso amarelo que aponta para a sociedade mesma, é um movimento de reflexão a partir do desconforto. O riso que vem do grotesco é meio perdido, do não saber o que fazer, não é uma proposta de riso por conformidade com a graça, ele é desesperado, desajustado, sem alocação. O grotesco cria rupturas de sentido e gera incomodo. O bufo é um grotesco por excelência.

Seu corpo aponta exageros, deformidades e vícios num lugar quase que inaceitável, que se protege na aceitação constrangida. Vênus, que ironicamente tem os braços amputados, como a Vênus de Milo, é grande, cheia de curvas carnudas e flores penduradas em seu figurino feito de restos encontrados no lixo, mas que a deixa feminina e sensual. Filó é corcunda, feia, tem dificuldade de fala e um figurino cinza. Como um recurso de complementação de opostos, quando estão representando suas pequenas cenas o jogo se inverte, Filó é quem mais fala, usa vestido e é autoritária enquanto Vênus recebe as recomendações. É um jogo bem construído, de quem tem uma vida inteira ao lado da outra, e muitos anos de atuação juntas do palco.

O grotesco, contudo, tem origem no teatro popular, nas ruas da Idade Média. Os mesmos bufões eram conhecidos em lugares diferentes e seus atores o apresentavam ao público durante toda a vida. Mas ali, na rua, não no palco italiano. Os que mais próximo chegavam das classes altas eram os bobos da corte. O espetáculo Gueto Bufo traz ainda estas duas características importantes de serem observadas: o protagonismo do bufão no palco “nobre” unido aos anos de carreira do artista popular.

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