segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Crítica: O Rio

Foto: SECOM/Itajaí - Victor Schneider
A construção imagética precisa de um mundo
Crítica do espetáculo O Rio, do Teatro didático da Unesp e Teatro de Brancaleone – São Paulo
Por Dâmaris Grün

Por trás do que lembro,
ouvi de uma terra desertada,
vaziada, não vazia,
mais que seca, calcinada.
De onde tudo fugia,
onde só pedra é que ficava,
pedras e poucos homens
com raízes de pedra, ou de cabra.

Os versos acima são do poema narrativo O rio ou Relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife, do poeta João Cabral de Melo Neto, publicado originalmente em 1953. Em linhas gerais o poema trata da viagem que o rio Capibaribe faz desde sua nascente no interior de Pernambuco até seu deságue no mar do Recife. É possível encontrar nessa poesia todas as características recorrentes na obra do poeta pernambucano, o rigor estilístico, a rima compassada e etc., bem como a temática da seca, do curso das águas, dos retirantes, dos canaviais, da fauna e flora da catinga e dos canaviais, por exemplo. E é a partir desse poema que materializa uma visão geral de um universo regional descrito pelo autor, que o Teatro Didático da Unesp e Teatro de Brancaleone abre a terceira edição do Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, em Itajaí, apresentando O Rio, espetáculo com alta precisão técnica e um refinamento de imagens que dão a ver o universo impactante da realidade descrita nos versos do poeta recifense.

Foto: SECOM/Itajaí - Victor Schneider
Antes de falar do espetáculo considero importante traçar uma brevíssima síntese do grupo: gerado dentro da Universidade Estadual Paulista, a Unesp, o Teatro Didático possui 20 anos de existência e é capitaneado por Wagner Cintra, professor do Instituto de Artes dessa universidade e diretor do espetáculo. Voltado para o teatro de pesquisa nas áreas do teatro de animação, de bonecos, e com um intenso diálogo com as artes visuais, a trajetória do grupo é bastante consistente, visto seu repertório e a participação em diversos festivais de teatro pelo país, e focada no rigor técnico da visualidade da cena. No primeiro contato que se tem com a cena de O rio é possível verificar uma precisão e um apuro, que é de ordem artesanal, dentro da linha de pesquisa em que estão empenhados. Digo isso porque verifico um alto nível na técnica de construção dos elementos de animação, de cenografia e caracterização desse trabalho, que resulta numa formalidade que não deixa arestas aparentes. É possível, assim, ver impressa a trajetória intensa de estudos, e todas as tentativas que geraram em acertos e possíveis erros, no resultado final do trabalho – entendendo aqui resultado não como um juízo de valor, de algo bom ou ruim, mas de fim pretendido dentro de um horizonte de expectativa artística - que transcorre sem falhas, sem tropeços técnicos. Isso está diametralmente ligado ao percurso acadêmico e longevo do grupo. É notável tal característica, pois é de dentro do laboratório acadêmico que o grupo constrói os artefatos cênicos que dispõem em cena, construídos a partir de materiais viáveis e eficazes como pó de cortiça, papel, fita crepe, exemplos de matérias-primas simples, de baixo custo, reutilizáveis e com o apelo lúdico para a construção do universo pretendido nesse tipo de trabalho e na natureza da encenação de O rio. Essa questão de apuro técnico relacionado à pesquisa intensa de longa data e verificada em cena está evidenciada na própria ficha técnica do espetáculo: o grupo assina as rubricas de cenografia, figurino, desenho de luz e dramaturgia, rubricas técnicas que retificam um trabalho preciso conjunto.

A cenografia se reduz a um chão coberto pelo pó de cortiça que materializa o chão agreste e ocre descrito na poesia de Cabral de Melo Neto. A sua amplidão no espaço ganha um horizonte com o fundo preto do palco. Há no centro um grande cubo central, pedregulho ocre e que gira como o globo terrestre e que contém em si a metáfora do mundo descrito na viagem do rio, da paisagem seca, vazia, vaziada, duro e cru do poema. Da rotunda caem farelos insistentes do mesmo material de que é feito o chão – a imagem de uma terra seca, arenosa - que banham o cubo e calcinam o caminho do rio e de suas gentes. As imagens do homem esqueleto, do boi seco, do homem que possui uma pela que se confunde com essa terra reiteram esse universo poético da natureza valente do sertão e dessa figura humana que dela emerge e que é muito pulsante na obra do poeta.

Foto: SECOM/Itajaí - Victor Schneider
As figuras e imagens que operam uma decodificação rápida do contexto regionalista e social também dividem a cena com os bonecos manipulados pelos atores que, por sua vez, carregam um significado mais neutro, na medida em que engendram a visão do ser/figura humana que caminha, como o rio que anda por um caminho tortuoso, cheio de imprevistos e segredos. Como, a título de exemplo, o momento em que um boneco extremamente pequeno em relação ao espaço da cena e do palco, caminha por cima de um cubo idêntico ao cubo central, porém em menor escala, dando voltas incessantes, capturando a metáfora de a vida ser esse eterno caminhar do homem em busca de um futuro desconhecido, mas promissor. Todo esse repertório imagético e cênico é banhado por uma luz que faz recortes precisos dos elementos na cena e captura uma atmosfera solar que destaca e abraça aquele mundo repleto de imagens fortes.

É por esse registro imagético pulsante do mundo particular encontrado na poesia de Cabral de Melo Neto que o espetáculo exige do espectador a disposição para uma apreensão das imagens que gere numa construção particular e subjetiva de cada indivíduo da expectação. A narrativa do poema em cena se esvai e esgarça dando a possibilidade de o espectador construir sua própria narrativa lírica pelos desenhos na cena. Logo, o espetáculo tem um ritmo compassado, como os versos de O Rio, e a direção não procura dar conta da transposição total da narrativa poética. O que fica evidente é o desejo de partilhar um universo capturado pela leitura daquele objeto textual e que opta pelo jogo da força das imagens figuradas da cena para o espectador. Aqui nessa experiência, a palavra falada aparece em alguns trechos do espetáculo somente em off, mas em raros momentos, o que solicita do espectador um olhar mais atento às imagens construídas em cena pelos atores/manipuladores e todos os sentidos que elas possam dar. Dessa forma, a palavra que é matéria anterior e precede a imagem material é como que dispensada, pois é substituída por uma narrativa visual contundente.

É muito importante destacar os corpos atentos e vivos dos atores/manipuladores que se apresentam em cena de forma límpida e concisa, com uma rigidez formal que se relaciona diretamente com os bonecos por eles manipulados. Isso porque uma intensa fisicalidade dos atores interfere na visualidade dos bonecos e vise e versa, são potencias físicas em cena que se relacionam e tomam diversas proporções no espaço amplo da cena. São naturezas absolutamente opostas que dialogam sutilmente para dar a ver aquele universo metafórico e visualmente rico para o espectador.

Considero a transposição do gênero poesia para a cena trabalho difícil, árduo, em que nem sempre se consegue estabelecer um contato profícuo com a expectação, ficando muitas vezes um lirismo solitário da cena e na cena, que não compactua de alguma forma com a subjetividade do espectador. Trazer todo um universo para cena e deixar que o espectador construa seus referenciais e imagens virtuais a partir de um banco imagético altamente técnico e rigoroso é característica marcante no trabalho do Teatro Didático da Unesp e Teatro de Brancaleone em O rio. É uma experiência satisfatória desse encontro de mundos. Tendo o poema como pedra angular em O rio vê-se todo um universo poético em cena que dialoga sim com o público, na medida em que permite que esse faça sua leitura de mundo a partir de uma carga visual apresentada com rigor técnico. E me parece fundamental que esse jogo possa permitir que o próprio ser/caminhante/espectador possa transpô-lo e ir além das subjetivações possíveis de serem captadas pela arte.

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