domingo, 8 de setembro de 2013

Critica: Odisseia

Fotos: SECOM/Itajai - Victor Schneider
O rosto no lugar da face
Crítica de Humberto Giancristofaro para a peça do Estúdio da Cena – São Paulo/SP

Pensemos nas articulações dos planos de imagem produzidas pela peça Odisséia. Alguns elementos especificamente dessa peça apresentam uma composição privilegiada para pensar o papel do rosto e até do close up no teatro contemporâneo. As expressões, os rostos, são usadas na peça como potência do falso. “Todos os seres vivos estão no aberto, manifestam-se e resplendem na sua aparência. Mas apenas o homem quer apropriar-se dessa abertura, apreender a sua própria aparência, o seu próprio ser manifesto. A linguagem é essa apropriação que transforma a natureza em rosto. Assim a aparência torna-se para o homem um problema, o lugar de uma luta pela verdade. [...] O rosto não coincide com a face. Por toda a parte onde qualquer coisa chega à exposição e tenta apreender o seu próprio ser exposto, por toda a parte onde um ser que aparece soçobra na aparência e a esgota, há um rosto. Assim, a arte pode dar um rosto mesmo a um objeto inanimado, a uma natureza morta. [...] E é possível hoje que toda a terra, transformada em deserto pela vontade cega dos homens se torne num único rosto”.

Odisseia segue esta construção de rostos para as cenas, mesmo as que trabalham em plano aberto, cheias de elementos, elas se compõem da junção de rostos em detrimento a uma face da história. O rosto de Odisseu estampado nos produtos, vendidos em cada esquina é o signo dessa operação que impeliu as imagens da peça para essa região do rosto onde o princípio de individuação deixa de reinar. Odisseu perde sua socialização e a comunicação com seu reino. Ele busca na sua jornada uma rostificação, uma reterritorialização do seu rosto e não suporta a desterritorialização que é feita dele, toda a liberdade e estado de fantasma, um duplo decaído de si e anseia por resgatar a ordem e estabelecer a sua medida como monarca de Ítaca. A Odisseia é um texto de descoberta do seu lugar no mundo e Odisseu combate a vida enquanto fluxo do acaso.

Odisseu trava uma batalha contra seu rosto projetado em canecas e chaveiros. Sua luta é contra isso que é desorganicizado – livre do organismo – e suplica para que o organizem. A percepção de um estado livre desses órgãos é insuportável para Odisseu, ele é um homem que só admite que os elementos se engendrem de uma forma, um rosto é um quebra-cabeça de boca, nariz e olhos para ele. Odisseu não vê a condição de captar esses elementos de outra forma, como a sensação de um rosto. “O rosto não é o seguimento exterior àquele que fala, que pensa ou que sente. A forma do significante na linguagem, as suas próprias unidades ficariam indeterminadas se o ouvinte eventual não guiasse as suas escolhas no rosto daquele que fala («olha, parece estar zangado...», «ele não pode ter dito isso...», «olha para mim quando te falo», olha-me bem...»). Uma criança, uma mulher, uma mãe de família, um homem, um pai, um chefe, um professor, um polícia não falam uma língua em geral, mas uma língua em que as tonalidades significantes estão indexadas em características específicas de rosto”.

Assim, o rosto de Odisseu não seria, meramente, um invólucro que cobre a cabeça como uma capa que faz sumir todo o suporte de determinação indexante, por aquilo que engendra uma tonalidade diferencial do que se dá como significativo na situação da cena, ou constitui-se nessa medida como a forma do significante. Nesse sentido, o rosto de Odisseu é o seu próprio espaço cartográfico de orientação de indicação que o guia, por fim, novamente até os braços de sua Penélope.

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  1. AGAMBEN, Giorgio, Moyens sans fins: notes sur la politique, trad. de Paris, Rivages, 1995, pp. 103-104) 
  2.  DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix, Mil Planaltos, Lisboa, Assírio & Alvim, p. 220

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