quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Crítica: Porque não estou onde você está

Fotos: SECOM/Itajaí - Victor Schneider
Solitários enlaces
Por Dâmaris Grün

O espetáculo "Porque não estou onde você está" fala de presenças ausentes que ocupam o mesmo espaço, de um casal sem afeto aparente que inventa regras fixas de convivência para poder suportar as agruras de um casamento torto e marcado pela presença de uma terceira figura, desestabilizadora e fantasmagórica, que confunde os sentimentos dos personagens Homem e Mulher, que habitam um casamento de “milímetros, de réguas”.

Baseada na obra Extremamente Alto e Incrivelmente Perto de Jonathan Safran Froer, romance que aborda a ausência de um pai na vida de seu filho ao serem separados por uma tragédia, a dramaturgia de Maira Lour capta a premissa temática da “ausência” do livro e transpõe a história para um casal que estabelece regras convivais que não podem ser quebradas, tais como nunca perguntar como o outro está, como foi o seu dia, nunca ser gentil nem mesmo demonstrar qualquer sentimento, e etc. Todo narrado pelos atores, com diálogos pontuais que carregam um sentido narrativo que vai aumentando a distância entre aquelas subjetividades, o que impera é uma frieza que se materializa no estatuto de regras por eles criado e na relação que estabelecem com o terreno do lar: demarcações milimétricas, retas, quadrados que beiram a cama, filigranas de olhar que beiram o ocultamento do outro no campo de visão do casal. Lugares “nada” por eles denominados e preenchidos por personagens extremamente solitários. Dentro dessa convivência completamente estática no afeto (do não saber dizer “Eu te amo”), no ocultamento de um pela presença do outro, deflagra-se o tempo inteiro a personagem Anna, que sintetiza a capacidade de amar de ambos, o amor fraternal que se confunde com paixão da Mulher por ela e o arrebatamento juvenil da paixão do Homem.

O texto tem ainda um fundo histórico, já que a presença de Anna em cena remete a alguma guerra - que pode ter sido a 2ª Guerra Mundial já que os figurinos tem uma modelagem que beira os anos 50 – em que ela se torna vítima fatal. Assim, a personagem aparece como uma rememoração, sempre num plano da memória do casal, como uma memória compartilhada e estraçalhada pela tragédia da guerra.

É interessante atentar para o fato de uma pretensa capacidade de expressar os sentimentos e sensações do casal só se dar na relação que ambos estabelecem, em tempos discrepantes, com Anna. Essa personagem aparece num plano da memória, mas é dentro dessa materialização que somente é possível ver uma relação mais pessoal e intensa de sentimentos do casal. Isso porque a aparição de Anna espelha a incapacidade de comunicação entre esses seres e, principalmente, a impossibilidade que eles têm de enunciar "Eu te amo". Isso porque nenhum personagem, aqui, nessa história, está presente onde o outro habita: o casal vive num mesmo espaço cotidiano, mas nunca estão juntos ou se permitem estarem. E a figura fantasmática de Anna opera uma cisão: é impossível aquele passado se estabelecer, pois ele é fruto de uma inadequação do casal ao presente, pois ele está amarrado às lembranças de um porvir que não se deu. Da mesma forma que o passado é alento aos dois, é uma regra estabelecida não o mencionarem, não falarem nada sobre ele ou revê-lo juntos. Dentro dessas impossibilidades comunicativas e emotivas que se materializam nessas não presenças, a metáfora da impossibilidade de ver o outro e estar ao lado de alguém de forma verdadeira é a grande chave desse espetáculo. Porque não estou onde você está é uma condição afirmativa do texto e da encenação, a conclusão do que vemos em cena carrega somente uma metáfora redentora: a libertação que o extravasamento dos afetos possibilita através do ato de soltar os bichos que o Homem cria em gaiolas e armadilhas.

A encenação de Maira Lour dialoga diretamente com a relação da ausência e frieza nas regras de convivência do casal. Na forma narrativa da dramaturgia as distâncias entre os personagens se estabelecem de forma límpida e proposital, e mesmo a palavra falada possui um caráter quase declamatório, que invariavelmente coloca o espectador em contato com o estado daquela situação. É por esse viés amorfo de emotividade que o espetáculo conserva uma dinâmica coreografada na fala, nos diálogos e no registro interpretativo marcado por gestos. Esses gestos substituem palavras que somem e que não podem sequer serem ditas, tamanha a distância que os milímetros daquelas regras impõem ao casal. Mesmo na relação mais direta, que se dá com a personagem Anna, tanto do Homem como da Mulher com ela, a contracenação se dá numa formalização dos sentimentos, através desses gestos secos e de movimentos coreografados que delimitam uma artificialidade daquelas relações, como no momento específico da primeira relação sexual entre Anna e o Homem por exemplo. O caminhar reto e estacado tira qualquer possibilidade de aconchego na recepção daquela história. É em milímetros, réguas, quadrados, gaiolas que estão presos aqueles estados d’alma. Assim, a escolha da direção, me parece, repousa na verificação cênica da frieza que emerge do conteúdo dramatúrgico. Reverberando assim em uma montagem extremamente formal e distanciada entre as atuações na cena e em como se verifica esse jogo com a plateia. Sobre esse dado do distanciamento nas atuações é possível aventar uma nesga de cumplicidade com a expectação na medida em que a ela se dirigem os personagens ávidos em comunicar aquilo que podem com o outro em cena. Esse é o jogo com a plateia, e ele faz um contraponto simbólico com a problematização da comunicabilidade nas relações entre as pessoas.

O desenho de luz de Beto Bruel recorta o espaço e delimita os sentidos daquela história em tomadas eficazes para aquelas situações. Os quadrados de branco que incidem em todo o espaço da casa, que se limita a uma cama, uma mesa com cadeira e uma máquina de datilografar, presentificam a coisa do milímetro, do “casamento de réguas” na visão dos próprios personagens. Assim como as gaiolas penduradas no cenário apresentam a metáfora do aprisionamento daquelas individualidades aos padrões por elas determinados. Esse desenho de luz permite espaços compactados por uma claridade sempre sombria, capaz de estabelecer sujeitos ocultados na visão espacial de cada um, encobertos, milimetricamente retidos em seus espaços “nada”. É importante destacar que a luz nas aparições de Anna é mais aberta, um âmbar que desenha uma materialidade mais onírica e de rememoração.


Porque não estou onde você está é um trabalho que possui um ano e meio de estrada e no qual se pode ver a busca da jovem Súbita Companhia de Teatro de uma singularidade formal e de tratar de questões que interessa aos seus integrantes. Na tentativa de cavar seus espaços no teatro e nas diversas linguagens que ele possibilita temos aqui um trabalho que tem uma cara e, principalmente, que é dado dentro da perspectiva de jovens sedentos pelo fazer teatral e pela pesquisa cênica.

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